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sexta-feira, 24 de março de 2017

A nova química do amor que fica - O amor líquido está com os dias contados, o amor quixotesco está de volta e se solidifica, meu velho Bauman


Pode ser apenas impressão deste escorregadio cronista de costumes, caríssimo amigo polaco Zygmunt Bauman, mas, cá entre nós, a goteira do amor pinga em ritmo mui vagaroso, começa a perder a força, pelo menos aqui no meu telhado e nas casas das redondezas — o mundo é uma vila Tolstoi, por suposto. Tudo que foi líquido, repares, parece que se solidifica. Será uma virada, um novo ciclo na roda da história? Muito cedo para avaliar, meu prezado, embora na vitrola João Gilberto retome o seu “hô - ba - lá – lá, hô - ba - lá – lá, uma canção...”

Pelo menos aqui na área, “hô - ba - lá – lá, hô - ba - lá – lá”, pelo menos no parque da Tupi, no Sumaré, SP, um casal de meninas se beijava no coreto ontem à tarde e fazia da chuva uma sólida tempestade de granizo, pelo menos é o que tenho observado, mr. Zyg, e olhe que nem citei ainda as malditas estatísticas. Sabias que voltou a crescer o número de casamentos nos trópicos? É o que dizem os anuários desde 2014.

Carajo, grande Zyg, que a terra lhe seja leve, sentiremos muito tua falta, sem palavras...

Este país é tão contraditório, meu velho, que até os encontros do Tinder — e outros correlatos aplicativos da sacanagem moderna e líquida — podem levar ao matrimônio. Maria, minha amiga gaúcha lá em Brasília, que o diga. Casadíssima, depois de um chamego tindernético na cidade do Rio de Janeiro. “Hô - ba - lá – lá, hô - ba - lá – lá, esta canção...”

Amor, com ou sem pica, amor picaresco, amor quixotesco que solidifica. Óbvio, mr. Zyg, que a putaria rola solta neste verão pecaminoso, nada mais natural — nada mais líquido e certo também do que o mantra do “lavou está novo”. A busca por nós mais firmes, porém, voltou com o visgo dos casais de outrora. Uma busca romântica, não obrigatoriamente careta. Um desejo. Sacanagem avulsa é bom, todavia cansa, assim funciona o movimento sexy e antropológico da vida, não achas?

Não testemunhava nada igual, polaco pai d'égua, desde priscas eras. Depois do lançamento do teu livro Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos (ed. Zahar, 2003), a bíblia que captou a fuleiragem amorosa, somente agorinha, na virada para 2017, comecei a entender que o amorzinho gostoso e demorado está de volta. É tendência. Mesmo antes do Carnaval. Apostem. Brincar junto nos blocos será a nova onda?

Tempo ao tempo, só a areia da ampulheta sabe a resposta e a guarda em silêncio. Até lá, paciência, que se mantenha o processo de solidificação do que parecia apenas gotejante. Mesmo que em alguns casos a inocente água inodora e incolor seja capaz de gerar um coração de gelo. Rio o riso possível, talvez com o filtro degradê do cinismo. Já é um avanço, hoje me encontro mais otimista do que um filme do Frank Capra. Muito prazer, Pollyana, moça.

Carajo, grande Zyg, que a terra lhe seja leve, sentiremos muito tua falta - sem palavras. Embora o amor estrebuche sinais de vitalidade, viejo polaco, no restante tudo segue na mesma lengalenga social clube.

A modernidade do atraso neoliberal liquida sem dó nos Tristes Trópicos. Vi um filme esta semana no cinema da rua Augusta, rapaz, que nem te conto. Título: Eu, Daniel Blake. Direção do teu amigo Ken Loach, aquele Corisco que não se entrega, que resistência, hombre.

A busca por nós mais firmes, porém, voltou com o visgo dos casais de outrora.

Pobre Daniel. Cagado e cuspido um personagem do teu livro Vidas Desperdiçadas. Daquelas figuras que deram até a última gota de sangue ao país e agora não contam com nenhuma segurança social por parte do Estado liquidado. Só pega a senha da decepção histórica na fila dos desvalidos. E olhe que o tiozinho mora em Newcastle, Inglaterra. Imagina no Brasil, Zyg, que adota aquele receituário capaz de tragédias gregas.

Guardes, porém, a reviravolta no amor como boa nova, te dou em breve notícias do nascimento de Irene, uma filha da imaginária Cratóvia, mistura do meu Crato com a Varsóvia materna. O sangue cosmopolita ainda bombeia os encontros amorosos de São Paulo.

* Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Se um cão vadio aos pés de uma mulher-abismo (editora Fina Flor), entre outros livros. Comentarista de televisão nos programas Papo de Segunda (GNT) e Redação Sportv.

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